Câncer é a principal causa de morte em 670 cidades do Brasil e pode liderar o ranking até 2029, diz observatório
05/11/2025
(Foto: Reprodução) Com terapias modernas, câncer caminha para se tornar doença crônica controlável
O câncer já superou as doenças cardiovasculares como principal causa de morte em 670 municípios brasileiros, o equivalente a 12% das cidades do país. O número, que considera dados compilados até 2023, representa um crescimento de 30% em oito anos — eram 516 em 2015.
Os dados foram apresentados nesta quarta-feira (5) durante o Fórum Big Data em Oncologia, em São Paulo, pelo Observatório de Oncologia, que analisou 26 anos de registros do Ministério da Saúde.
O levantamento mostra que as mortes por tumores cresceram 120% desde 1998, mais que o dobro do aumento observado nas doenças cardiovasculares (51%). Se nada mudar em termos de políticas públicas, afirmam ao g1 os pesquisadores responsáveis pela análise, o câncer deve se tornar, até 2029, a principal causa de morte no país.
“Estamos vivendo uma transição epidemiológica”, explica o oncologista Abraão Dornellas, médico do Hospital Israelita Albert Einstein e consultor do Observatório. “Com mais gente vivendo mais tempo e melhor controle de infarto e Acidente Vascular Cerebral (AVC), o câncer ganha peso relativo nas estatísticas. Mas isso também revela desigualdade: onde há mais estrutura e melhor registro, ele aparece com mais força.”
Metodologia do levantamento
O estudo é uma análise quantitativa e descritiva baseada em microdados públicos do Ministério da Saúde, especialmente do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/DataSUS).
Foram incluídos óbitos ocorridos entre 1998 e 2023 no Brasil, segundo o local de residência das pessoas.
A base populacional usada para padronização das taxas foi a do Censo de 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE).
Os pesquisadores compararam as mortes por neoplasias (cânceres) com as mortes por doenças do aparelho circulatório (como infarto e AVC), observando mudanças absolutas e relativas nos períodos de 2015, 2020 e 2023.
O objetivo foi identificar em quais municípios o câncer já é a principal causa de morte, medir a velocidade de crescimento dos óbitos e descrever a distribuição dos casos por sexo, faixa etária e região do país.
Pele branca está mais suscetível a casos graves de câncer de pele.
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Sul puxa a virada
O avanço do câncer no Brasil tem um epicentro definido: o sul do país.
De acordo com o estudo, 310 municípios da região — quase metade (46%) de todas as cidades brasileiras onde o câncer já é a principal causa de morte — estão concentrados nos três estados da região Sul.
O Rio Grande do Sul lidera o ranking nacional, com 168 municípios (34% do total estadual) nessa condição. Lá, 22% de todas as mortes já são provocadas por tumores, índice bem acima da média nacional, de 17%.
A pesquisadora Nina Melo, coautora do estudo, explica que o cenário gaúcho é resultado de múltiplos fatores.
“O Sul tem a maior expectativa de vida do país e uma rede de diagnóstico mais estruturada, o que naturalmente amplia os registros”, diz. “Mas há também fatores ambientais e genéticos: é uma população majoritariamente caucasiana, raça mais suscetível ao câncer de pele, e há municípios com uso intensivo de agrotóxicos e exposição industrial.”
Dornellas complementa que o aumento pode refletir tanto o avanço das políticas de saúde quanto as desigualdades históricas.
“Em muitas cidades do Sul, o sistema é capaz de diagnosticar melhor. Já em outras regiões, o câncer mata sem diagnóstico — e essas mortes acabam subnotificadas”, afirma.
A epidemia nos pequenos municípios
Quase metade das cidades onde o câncer já é a principal causa de morte tem menos de 25 mil habitantes. Ao todo, essas 670 cidades reúnem 9,2 milhões de brasileiros, a maioria em áreas com pouca estrutura de atendimento oncológico.
“O câncer deixou de ser um problema das capitais. Ele chegou aos interiores”, diz Nina. “Nessas regiões, o diagnóstico é tardio. A mulher não faz mamografia porque precisa se deslocar para outro município e perde o dia de trabalho. Quando sente um caroço, já é um tumor avançado.”
Dornellas reforça que o interior é o novo epicentro do desafio oncológico.
“Há verdadeiros desertos assistenciais fora das capitais. Faltam serviços de patologia, cirurgia oncológica e radioterapia. Muitos pacientes percorrem centenas de quilômetros para começar o tratamento — e isso reduz as chances de cura.”
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O peso do envelhecimento
Segundo o estudo, 77% das mortes por câncer ocorrem em pessoas acima dos 60 anos, e 56% entre homens. Os tipos mais letais continuam sendo pulmão, mama e próstata.
“O câncer é uma doença do envelhecimento celular. Quanto mais o país envelhece, maior o número de diagnósticos”, explica Dornellas. “Mas o problema é que os idosos chegam tarde aos serviços de saúde. E os homens, em especial, ainda fazem menos exames preventivos.”
Para Nina, a desigualdade regional amplia o problema.
“No Norte e Nordeste, o câncer de colo do útero — que é evitável com vacina e Papanicolau — ainda é o que mais mata mulheres. Isso mostra que o acesso é desigual e que políticas preventivas ainda não alcançam todo o território.”
Diagnóstico que demora, lei que falha
Mesmo após a criação da Lei dos 60 dias, que obriga o início do tratamento oncológico em até dois meses após o diagnóstico, boa parte dos pacientes ainda espera muito mais.
“O Sistema Único de Saúde (SUS) tem estrutura para curar muitos tipos de câncer, mas o gargalo está na demora”, diz Nina. “Quando o tratamento começa, o tumor já se espalhou. E aí a chance de cura cai drasticamente.”
“Se o número de casos continuar crescendo, o sistema não vai suportar a pressão”, alerta Dornellas. “Precisamos de rastreamento estruturado, de equipes regionais e de logística eficiente para que o diagnóstico não dependa do CEP do paciente.”
A virada que o país não acompanha
Os especialistas concordam que o Brasil não está preparado para a virada epidemiológica prevista para o fim da década.
“Tratar câncer é caro e complexo. Envolve medicamentos de alto custo, equipes multidisciplinares e infraestrutura tecnológica”, explica Dornellas. “Sem investimento consistente, o sistema não vai conseguir absorver essa nova demanda.”
“É hora de agir”, reforça Nina. “A prevenção é a única estratégia sustentável. Prevenir é mais eficaz — e mais barato — do que remediar.”